Como dois devs franceses criaram um jogo Flash que alcançou 100 milhões de jogadores

há 1 dia 7

Transformice começou como um projeto de fim de semana em 2010 e se transformou em um fenômeno global que desafiou todas as regras da indústria de games. A história de Jean-Baptiste Le Marchand e Mélanie Christin mostra como simplicidade, timing perfeito e decisões ousadas transformaram ratinhos digitais em um case impressionante no mundo indie.

O protótipo que virou viral

transformice

Em maio de 2010, dois desenvolvedores franceses trabalhavam em tempo integral na indústria de games quando decidiram criar algo “só por diversão”. Le Marchand, programador, e Christin, designer gráfica, levaram apenas três semanas para desenvolver o protótipo jogável de Transformice.

A premissa era absurdamente simples: dezenas de jogadores controlam ratos que precisam pegar queijo e voltar para a toca

Eles lançaram o jogo discretamente em um único fórum francês de videogames chamado JeuxOnline. A recepção foi boa, mas nada indicava o tsunami que estava por vir. Duas semanas depois, os usuários do SomethingAwful — um dos fóruns mais influentes e caóticos da internet na época — descobriram Transformice.

O jogo nem sequer tinha tradução para inglês naquele momento. Mas isso não impediu os “Goons” (como os usuários do SomethingAwful se chamavam) de invadirem as salas e gritarem omelette du fromage, no chat, citando a clássica cena do desenho “O Laboratório de Dexter”.

A explosão que derreteu servidores

Quando o SomethingAwful encontrou Transformice, era questão de tempo até o 4chan entrar na festa. E entrou. O servidor único que Le Marchand e Christin pagavam do próprio bolso simplesmente “derreteu” sob a avalanche de acessos simultâneos.

Foi então que a tempestade perfeita se formou. Kotaku, Rock Paper Shotgun, Indiegames.com e PC Gamer publicaram matérias sobre o jogo quase simultaneamente. O efeito foi devastador: o uso de banda explodiu para níveis que dois desenvolvedores com empregos de tempo integral jamais poderiam custear sozinhos.

Em 2010, Transformice registrava 80 mil visitantes únicos por dia. Não havia monetização, não havia plano de negócios, não havia sequer a intenção de transformar aquilo em empresa. Era apenas dois criadores franceses vendo seu projeto de fim de semana colapsar sob o próprio sucesso. A solução emergencial foi colocar um banner do AdSense horizontal sob o jogo, gerando média de €47 por dia.

Até o fim de 2010, a receita publicitária chegou a €11 mil. Mas a infraestrutura multiplayer em tempo real exigia escala que eles não conseguiam acompanhar sozinhos

A aposta de largar tudo

Em abril de 2011, Le Marchand e Christin tomaram a decisão mais arriscada de suas vidas: largaram os empregos estáveis e fundaram a Atelier 801. A base de jogadores dobrou rapidamente, saltando de 150 mil para 300 mil visitantes únicos diários.

Atelier 801 logo 2Logo da Atelier 801 em 2011

A distribuição geográfica era exótica: mais de 50% da audiência vinha do Brasil, seguido por Estados Unidos (11%), Turquia (8%) e França (7%). Eles traduziram o jogo para todos os idiomas possíveis, incluindo árabe e hebraico.

O AdSense performava bem, gerando média de €280 por dia e picos de €1.000 em outubro de 2011. No total, 2011 rendeu €103 mil em publicidade, mais $55 mil do anúncio pré-loader. Eles contrataram o moderador mais engajado como community manager.

Então veio o desastre: a conta do Google AdSense foi banida sem aviso. Mais de €13.500 em cliques simplesmente evaporaram. Le Marchand e Christin pararam de pagar a si mesmos por meses para manter o servidor e o salário do funcionário.

O resgate e a virada free-to-play

A solução veio por pura sorte: um amigo estudou na mesma escola que um funcionário do Google. Poucos emails depois, a conta foi desbloqueada em minutos. O motivo do ban: o banner estava a menos de 150 pixels do jogo Flash, violando políticas do AdSense

Mas a experiência os deixou amargos com dependência de anúncios. Eles passaram seis meses desenvolvendo um modelo free-to-play com extremo cuidado: apenas cosméticos pagos, maioria dos itens ainda disponível jogando, preços baixíssimos.

Christin redesenhou todos os 150-200 itens em Flash com clips em escala de cinza, permitindo customização completa de cores. A moeda premium eram morangos (strawberries), e cinco cores de pelagem especiais eram exclusivas para compradores.

Em 14 de junho de 2012, eles removeram todos os anúncios e lançaram o free-to-play. A resposta foi impressionante: o primeiro mês gerou mais de €250 mil. Eles contrataram três desenvolvedores, três community managers, um CFO e um administrador de sistemas.

Facebook 16 January 2012

Os números que impressionam

Entre junho e dezembro de 2012, as microtransações geraram €1.068.300, com média de €5.262 por dia. O recorde de jogadores simultâneos foi quebrado: 86 mil usuários online. Em 2012, o jogo tinha 10 milhões de contas criadas.

Mas 2013 começou lento. Eles haviam dado conteúdo demais de graça no evento de Natal 2012, prejudicando as vendas por meses. O número de jogadores caiu 15% ao longo do ano. Eles tomaram a decisão impopular de parar de dar chapéus gratuitos em eventos sazonais

Em 2014, a receita total foi de €929.025, com lucro líquido de €40.309 após impostos e despesas. Em janeiro de 2015, o lançamento no Steam trouxe 400 mil downloads no primeiro mês e 120 mil contas novas.

A trajetória de crescimento foi impressionante: 10 milhões de contas em 2012, 60 milhões em 2015, 70 milhões em 2017 e 100 milhões em 2019. Entre agosto de 2012 e agosto de 2013, a Atelier 801 registrou vendas de $1,2 milhão.

O legado de um projeto de fim de semana

Le Marchand e Christin admitiram retrospectivamente que erraram ao não fazer relações públicas. Nos primeiros anos, a única cobertura de imprensa foram quatro artigos em 2010. Eles também subestimaram mobile e precificaram itens muito baixo, não permitindo que superfãs gastassem mais.

Em 2013, a Atelier 801 recebeu o prêmio “Empreendedor do Ano” da região de Nord, França. A empresa chegou a empregar 50 pessoas e lançou outros títulos como Bouboum, Fortoresse, Nekodancer e Dead Maze. Christin deixou a empresa em 2022

Transformice continua ativo até hoje, resistindo ao fim do Flash Player graças ao lançamento na Steam e emuladores como Ruffle. A história permanece como prova de que dois desenvolvedores com uma ideia simples, timing perfeito e coragem para arriscar podem competir com gigantes da indústria.

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