A Electronic Arts surgiu em 1982 com uma ambição inusitada: transformar desenvolvedores de jogos em verdadeiras estrelas do rock. Mas a trajetória do maior império dos games esportivos começou bem antes, quando Trip Hawkins, aos 16 anos, tomou US$ 5.000 emprestados ao pai para criar o jogo de tabuleiro “Accu-Stat Pro Football”.O projeto fracassou e Hawkins percebeu que os jogadores odiavam fazer cálculos complexos durante o jogo. Esse insight plantou a semente de uma revolução digital.
É essa visão que levou Hawkins de Harvard, onde idealizou um curso de “Estratégia e Teoria de Jogos Aplicada”, até a Apple, como funcionário #68. Após ver suas opções de ações valorizarem US$ 7,5 milhões no IPO da empresa, ele finalmente teve recursos para fundar a Electronic Arts e provar que software pode ser arte. Neste artigo, separei 7 curiosidades que você precisa conhecer sobre a EA.
7 curiosidades da Electronic Arts
Manifesto de 1983 | Campanha “Pode um computador fazer você chorar?” que elevou desenvolvedores a “software artists”. |
Jornada até Madden | Viagem de 48h de trem para garantir 11 jogadores por time, gerando três anos de desenvolvimento extra. |
Operação Chernobyl | Sala secreta para engenharia reversa do Genesis, forçando termos favoráveis da Sega. |
Steve Wozniak no conselho | Wozniak entrou no conselho da EA, emprestando credibilidade após Hawkins sair da Apple com US$ 7,5 mi. |
Jogos como álbuns de rock | Embalagens gatefold inspiradas em LPs e campanha “We See Farther” com todo o orçamento de marketing. |
“Império do Mal” | Aquisição e fechamento de estúdios como Bullfrog e Maxis, prática reconhecida como “marginalmente eficaz”. |
Aquisição de US$ 55 bilhões | LBO recorde financiado por US$ 20 bi em dívida, pressionando monetização anual de franquias |
1. O Manifesto de 1983: pode um computador fazer você chorar?
A Electronic Arts chamou a atenção em 1983 com uma campanha publicitária extremamente provocativa para a época. O texto vinha acompanhado de uma foto em preto e branco de seus desenvolvedores e fazia uma pergunta audaciosa: “Pode um computador fazer você chorar?
Não era um simples slogan. Era um manifesto que buscava redefinir a percepção pública dos videogames. Naquela época, os desenvolvedores de jogos eram frequentemente vistos como meros programadores ou codificadores. A EA, no entanto, referia-se a eles como “software artists” (artistas de software), buscando elevar seu status ao de criadores de arte e emoção genuína, comparáveis a músicos ou cineastas. O posicionamento estratégico de Hawkins era claro: a EA não estava vendendo código; estava vendendo cultura, sentimento e experiências que poderiam evocar uma resposta emocional profunda.
A campanha de 1983 serve, portanto, como o ponto de origem de uma dualidade intrínseca à empresa: o idealismo criativo versus a máquina corporativa de produção em massa.
2. A trajetória hollywoodiana até Madden
A história por trás do primeiro Madden Football é digna de Hollywood. Em 1984, Trip Hawkins e o produtor Joe Ybarra viajaram por dois dias em um trem Amtrak de Denver para Oakland para convencer John Madden a emprestar seu nome ao jogo. Durante 48 horas, o ex-técnico manteve um charuto não aceso na boca – que se desintegrava lentamente enquanto ele explicava táticas de futebol americano do nascer ao pôr do sol. Madden exigiu que o jogo tivesse 11 jogadores por time, não os 7 que a EA propunha. “Se não tiver 11 jogadores, não é futebol de verdade”, declarou, forçando a empresa a gastar três anos desenvolvendo o que internamente era chamado de “Trip’s Folly” (A Loucura do Trip).
Essa exigência técnica era um obstáculo colossal para os computadores da época. Os desenvolvedores da EA e o próprio fundador, Trip Hawkins, defendiam uma versão simplificada, como 7 contra 7, para lidar com as limitações de processamento. A insistência de Madden, que provavelmente nada sabia sobre programação, fez com que o projeto se arrastasse.
Para superar os desafios técnicos impostos pela exigência de 11 contra 11 de Madden, a Electronic Arts, contratou uma ajuda externa para auxiliar no complexo código de simulação: Bethesda Softworks. Na época, a Bethesda era um estúdio nascente focado em desenvolvimento de software e portabilidade. O seu auxílio foi fundamental para que a EA superasse as barreiras de desempenho e conseguisse lançar a simulação de futebol americano conforme exigido por Madden.
A longa batalha estabeleceu o DNA da franquia: o compromisso inabalável com a simulação detalhada. A teimosia de Madden ensinou à EA uma lição crucial: no longo prazo, a autenticidade e a exclusividade da Propriedade Intelectual (IP) de Madden e sua visão superavam os altos custos de desenvolvimento a curto prazo. Essa priorização da IP real e da simulação autêntica é o fundamento de todo o império EA Sports.
3. Operação Chernobyl: Deixando a SEGA encurralada
Em 1989, a EA criou uma sala secreta em sua sede apelidada de “Chernobyl”. Apenas uma pessoa tinha acesso: Mike Schwartz, que passou um mês estudando manuais de desenvolvimento do Sega Genesis e escrevendo documentação original sem usar código proprietário. Steve Hayes e Jim Nitchals lideraram este projeto que permitiu à EA desenvolver jogos para Genesis sem pagar as taxas de licenciamento da Sega.
Sob a liderança de Steve Hayes e Jim Nitchals, a EA iniciou um projeto de engenharia reversa, que envolveu duas equipes: uma desmontava o hardware para entender seu funcionamento, enquanto a outra documentava tudo de forma limpa, sem contato entre si, para evitar problemas legais. Esse processo permitiu à EA desenvolver jogos para o Genesis independentemente do kit oficial da SEGA.
Além disso, a EA contratou uma empresa para criar seu próprio kit de desenvolvimento, o “SEGA Probe” (apelidado de “Sprobe”), que emulava todas as funções do console e acelerava o trabalho de desenvolvimento e correção de bugs, garantindo aos desenvolvedores mais tempo para aprimorar os jogos. O primeiro jogo totalmente desenvolvido usando esse kit foi “John Madden Football” em 1990, aumentando a complexidade e qualidade dos jogos esportivos para a época.
Na véspera da Consumer Electronics Show (CES) de 1990, o fundador da EA, Trip Hawkins, confrontou os executivos da Sega, ameaçando lançar jogos para o Genesis sem licença, usando o desenvolvimento próprio como barganha. Inicialmente irritada pela engenharia reversa, a SEGA recuou para evitar um litígio custoso e, no dia seguinte, na CES, ofereceu à EA um acordo de licenciamento muito mais favorável. A EA passou a ter controle sobre a aprovação dos títulos, direito de produzir múltiplos jogos sem limitações e taxas de royalties bem reduzidas.
Essa negociação resultou em uma economia estimada de US$ 35 milhões para a EA nos três anos seguintes e deu à empresa uma vantagem significativa no mercado de consoles 16-bit, sendo capaz de lançar jogos como “Budokan: The Martial Spirit”, “Populous”, e “Zany Golf”.
4. O cofundador da Apple como conselheiro
Steve Wozniak, cofundador da Apple, foi um membro importante do conselho de diretores da Electronic Arts (EA) nos primeiros anos da empresa. Recrutado por Trip Hawkins logo após a fundação da EA em 1982, a presença de Wozniak trouxe uma credibilidade tecnológica fundamental para a jovem empresa, ajudando a atrair investidores e prestígio.
A relação entre Trip Hawkins e a Apple não foi por acaso: Hawkins trabalhou na Apple como o funcionário número 68 e foi parte integrante do crescimento da empresa nos primeiros anos. Ele saiu da Apple apenas após suas opções de ações valorizarem cerca de US$ 7,5 milhões depois do IPO da companhia. Essa conexão ajudou Hawkins a formar uma equipe experiente e confiável ao fundar a EA.
Wozniak, famoso por ter cofundado a Apple e criado o Apple II, foi consultor e colaborador da EA, agregando expertise técnica e ajudando a moldar a visão inovadora da empresa. Essa sinergia entre a cultura criativa da Apple e a filosofia de Trip Hawkins em elevar o dese
nvolvimento de jogos a uma forma de arte (“software artists”) foi decisiva para o sucesso inicial da Electronic Arts.
5. Games embalados como álbuns de Rock
A Electronic Arts (EA) foi pioneira ao embalar seus primeiros jogos em capas de álbum do tipo gatefold, quadradas e idênticas às dos discos de rock da época. Em 1983, a empresa contratou a Ivy Hill Packaging, uma das maiores e mais respeitadas impressoras de capas de álbuns nos Estados Unidos, para criar essas embalagens únicas e distintivas.
Hawkins, fundador da EA, acreditava que os jogos de computador eram uma forma de arte e que seus criadores deveriam ser reconhecidos como estrelas do rock. Por isso, os desenvolvedores dos jogos eram fotografados como astros musicais, com seus nomes destacados em destaque na capa do produto, algo revolucionário em uma indústria que raramente creditava os autores. Essa abordagem ajudou a posicionar a empresa como inovadora e orientada para a valorização dos artistas de software.
A famosa campanha publicitária “We See Farther”, lançada em 1983, foi uma expressão dessa visão e consumiu o orçamento total de marketing da EA naquele ano. Essa campanha e o design das embalagens estabeleceram a identidade da EA como uma empresa que tratava o software como uma forma artística, elevando o prestígio dos jogos e dos seus criadores no mercado.
Além disso, ao vender os jogos diretamente para varejistas, a EA conseguia maiores margens e controle da distribuição, consolidando sua marca e criando uma base de fãs leal desde o início.
Esse modelo de embalamento foi seguido por outras empresas por um tempo, mas foi a EA que teve o mérito original de estabelecer os jogos como produtos culturais dignos de tratamento artístico diferenciado.
6. O “império do mal
Durante os anos 2000, a Electronic Arts (EA) adquiriu uma reputação controversa na indústria de videogames por sua estratégia agressiva de compras e fechamentos de estúdios, ganhando o apelido de “Evil Empire” (Império do Mal). A EA focava em adquirir estúdios principalmente por suas propriedades intelectuais valiosas, mas frequentemente impunha mudanças rígidas no desenvolvimento que prejudicavam a qualidade dos jogos e, em casos de fracasso comercial, fechava os estúdios adquiridos.
Estúdios como Origin Systems (criadora da série Ultima), Bullfrog Productions, Westwood Studios (criadora de Command & Conquer), Maxis (criadora de SimCity), e Pandemic Studios são exemplos notórios de vítimas desse modelo. Origin Systems, por exemplo, foi pressionada a finalizar rapidamente títulos mal recebidos como Ultima VIII e Ultima IX, o que contribuiu para o declínio da marca, levando ao fechamento do estúdio em 2004.
Em 2008, o então CEO John Riccitiello reconheceu publicamente que essas práticas anteriores foram “marginalmente eficazes” e prejudiciais à cultura da empresa. A partir daí, a EA começou a alterar sua abordagem, dando mais autonomia aos estúdios adquiridos e tentando preservar suas culturas internas. Executivos como o CFO Blake Jorgensen também admitiram que a estratégia anterior não era ideal e indicaram uma redução nas aquisições, focando mais em seus estúdios internos.
Desenvolvedores importantes, como John Carmack (id Software) e Peter Molyneux (Bullfrog), passaram a reconhecer mudanças positivas na EA após esses anos, declarando que a empresa não era mais a temida “Evil Empire”, apesar de reconhecerem que a aquisição por grandes corporações inevitavelmente altera a dinâmica dos estúdios.
7. Os sauditas na jogada
Encerramos com a curiosidade mais recente. Em uma das maiores e mais complexas manobras financeiras da história recente da tecnologia, a Electronic Arts anunciou um acordo para ser adquirida em um leveraged buyout (LBO) ou “aquisição alavancada”, avaliado em US$ 55 bilhões (US$ 210 por ação). Este valor representaria a maior aquisição alavancada já registrada na indústria de games.
Esse consórcio é formado por três grandes players: a Silver Lake Partners, uma influente firma de private equity, a Affinity Partners, empresa liderada por Jared Kushner — genro do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump — e o Fundo de Investimento Público (PIF) da Arábia Saudita, um dos maiores fundos soberanos do mundo. A participação do PIF sinaliza a entrada forte e estratégica do capital geopolítico no mercado global de games, mostrando como jogos eletrônicos deixaram de ser apenas entretenimento para se tornarem ativos financeiros robustos.
O modo como a compra foi estruturada é chave para entender o que vem pela frente. A maior parte do valor, cerca de US$ 20 bilhões, será financiada por uma gigantesca dívida contraída junto ao JPMorgan Chase — a maior dívida para esse tipo de operação já registrada. Na prática, isso significa que a EA, agora privada, estará sob forte pressão para gerar dinheiro de forma constante e previsível a fim de pagar essa dívida.
Esse cenário reforça ainda mais a dependência da EA em suas franquias anuais e estáveis, como Madden e EA FC (ex-FIFA), que apresentam receitas consistentes e garantidas todo ano. Além disso, reforça a tendência de monetização contínua e maximização de lucros, moldando a cultura e a estratégia da empresa para focar em fluxo de caixa e rentabilidade, nem sempre alinhados com inovação ou riscos criativos.
Com isso, o fechamento do capital da EA não é apenas uma operação financeira gigantesca, mas um momento emblemático que vai definir a direção da empresa nos próximos anos.