Em 2025, a Kodak representa um paradoxo fascinante e complexo. Fundada em 1888, a empresa foi um ícone global da fotografia analógica por mais de um século, com amplo domínio no mercado de câmeras e filmes. No entanto, em 2012, a Kodak precisou declarar falência após não conseguir se adaptar aos avanços da fotografia digital — ironicamente, uma tecnologia que a própria empresa ajudou a desenvolver, mas que acabou por não priorizar comercialmente.
Na época, a Kodak acumulava dívidas bilionárias, vendeu grande parte de suas patentes e encerrou vários segmentos tradicionais para emergir da falência em 2013, focando seu negócio principalmente na fabricação de filmes cinematográficos, produtos químicos e licenciamento da marca. Desde então, apesar de não voltar ao auge, a Kodak conseguiu manter uma presença significativa no setor de películas fotográficas e na indústria cinematográfica, além de diversificar em setores como o farmacêutico (sim, isso mesmo!)
O analógico no mundo digital
Hoje, a Kodak atravessa um momento de dualidade profunda. Por um lado, a Geração Z vem redescobrindo o fascínio do filme analógico, impulsionando um renascimento da fotografia vintage que valoriza as imperfeições, texturas e o ritual manual do processo fotográfico tradicional. Por outro lado, essa mesma geração não necessariamente quer lidar com película física, que exige revelação e limitações práticas. Para atingir esse público, a Kodak também oferece câmeras digitais com estética retrô e filtros que simulam o visual analógico, unindo nostalgia e conveniência tecnológica.
A Kodak tem expandido seu catálogo para atrair essa geração, lançando produtos como a câmera em formato de chaveiro — compacta, estilosa e voltada para o público que valoriza praticidade e design retrô.
Kodak lança câmera de bolso ultracompacta e nostálgica
A empresa também aposta em um nicho de dispositivos que chamam a atenção de muitos jovens, as impressoras digitais portáteis que permitem a revelação instantânea de fotos tiradas por smartphones ou câmeras digitais. Esses dispositivos são populares entre a Geração Z e millennials que desejam a experiência tátil e física da fotografia, mas sem a complexidade e os custos associados ao filme tradicional.
Essas impressoras digitais funcionam como um elo entre o universo analógico e digital, atraindo especialmente públicos jovens que valorizam produtos que ofereçam conveniência aliada a um toque de nostalgia. Como vários fabricantes, a Kodak aposta nesse segmento para diversificar sua receita além das películas tradicionais e reviver seu legado na cultura pop.
Hollywood e a tradição cinematográfica que resiste
No setor cinematográfico, a Kodak mantém um papel essencial ao fornecer películas para grandes produções. Filmes recentes, como “Oppenheimer” (2023), foram capturados totalmente em película IMAX de grande formato, reafirmando a disposição de diretores renomados em privilegiar o visual único da película.
Essa fatia do negócio é estratégica para a Kodak: grandes estúdios continuam mantendo contratos de longo prazo, garantindo fluxo de receita e visibilidade para a marca, mesmo em um mercado audiovisual cada vez mais digitalizado.
A tradição do filme se mantém especialmente forte entre cineastas de prestígio. Christopher Nolan, Quentin Tarantino, Paul Thomas Anderson e Jordan Peele são defensores ferrenhos da película, argumentando que ela oferece uma profundidade visual e textura orgânica impossíveis de replicar digitalmente. Essa preferência não é apenas estética: muitos diretores acreditam que o processo mais deliberado de filmagem em película resulta em performances mais autênticas dos atores.
Números do mercado cinematográfico revelam a importância estratégica:
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Aproximadamente 20-25% das grandes produções de Hollywood ainda utilizam película, seja parcial ou totalmente
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O segmento de películas cinematográficas representa cerca de 30-35% da receita total da divisão de filmes da Kodak
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Contratos com grandes estúdios como Warner Bros., Universal e Sony garantem pedidos mínimos anuais, proporcionando previsibilidade financeira
O formato IMAX continua sendo um diferencial competitivo. A Kodak é praticamente a única fornecedora de película IMAX de 70mm no mundo, um nicho premium que justifica margens mais altas. Filmes como “Dunkirk” (2017), “Tenet” (2020) e “Oppenheimer” demonstram que existe demanda sustentada para essa experiência cinematográfica única.
Além disso, o mercado internacional de cinema independente e filmes de arte tem mostrado crescimento na utilização de película. Festivais de cinema como Cannes e Sundance frequentemente destacam produções analógicas, criando um ciclo virtuoso de visibilidade e demanda.
Produções recentes também continuam valorizando as películas Kodak. Por exemplo, a série “Fallout”, inspirada na famosa franquia de jogos, utiliza película Kodak em sua nova temporada para realçar uma atmosfera pós-apocalíptica com nuances e texturas únicas que o digital não oferece.
Além disso, Kodak lançou recentemente uma atualização importante para sua linha de películas cinematográficas Vision3, com a introdução da emulsão Vision3 5219. Essa nova estrutura oferece maior sensibilidade à luz, maior latitude e uma reprodução de cor ainda mais fiel, garantindo qualidade técnica de ponta para cineastas que buscam combinar tradição e inovação em suas produções.
Retorno da Kodak ao Brasil: nostalgia com licença local
Além do aquecimento global do filme analógico, a Kodak vem surfando a onda nostálgica também no Brasil. Em 2024, a marca retornou ao mercado nacional por meio de uma parceria de licenciamento: a startup brasileira SegPack adquiriu os direitos de usar o nome Kodak para uma linha de câmeras instantâneas e filmes fotográficos fabricados e distribuídos localmente.
O portfólio inclui modelos compactos de câmera instantânea, semelhantes aos clássicos da década de 1970, com design retrô e recursos digitais básicos (flash automático, modo duplo de exposição e suporte a cartuchos peel-apart). Essa reedição foi um sucesso de vendas nos principais varejistas de eletrônicos, esgotando lotes iniciais em menos de um mês.
Em paralelo ao retorno comercial, festivais de fotografia analógica no Rio de Janeiro e em São Paulo passaram a destacar sessões de câmera instantânea patrocinadas pela marca licenciada, reforçando o vínculo emocional com o público e ampliando a visibilidade regional.
Esse movimento mostra que, apesar dos desafios financeiros globais, a Kodak, através de parcerias inteligentes, consegue revitalizar sua presença em mercados-chave, sustentando o apelo nostálgico que alimenta toda a sua cadeia de valor.
Parcerias estratégicas e o potencial de lifestyle da Kodak
Mais do que uma fabricante de filmes e câmeras, a Kodak vem explorando seu potencial como uma marca de lifestyle, entrando em parcerias estratégicas para revitalizar sua imagem junto ao público jovem e conectado. Um dos exemplos mais recentes é a colaboração com a Reebok, que resultou no lançamento de uma linha exclusiva de tênis inspirados na icônica identidade visual da Kodak, com cores vibrantes e design retrô que remetem à era clássica da fotografia analógica.
Essa tendência de expansão para o segmento de moda é parte de uma estratégia mais ampla para posicionar a Kodak como uma marca culturalmente relevante e aspiracional, especialmente para a Geração Z e millennials. Além de roupas e calçados, a marca tem aparecido em acessórios, como mochilas e bonés, que celebram a nostalgia e a estética vintage.
Ao integrar sua marca ao universo lifestyle, a Kodak consegue engajar seguidores que vão além dos fotógrafos e cineastas, ampliando seu ecossistema de consumidores e fortalecendo o branding. Essas parcerias ajudam a criar uma narrativa emocional que conecta a tradição da Kodak com o estilo de vida contemporâneo, tornando a marca uma referência tanto no mundo tecnológico quanto na cultura pop.
Estratégias para sobreviver à tempestade
Apesar do boom analógico, os resultados financeiros da Kodak em 2025 são preocupantes. No segundo trimestre, a empresa acumulou um prejuízo líquido de US$ 26 milhões, contrastando com lucro positivo no ano anterior. A receita apresentou leve queda para US$ 263 milhões, enquanto a dívida total atingiu US$ 500 milhões.
O caixa disponível caiu para US$ 155 milhões, longe dos US$ 201 milhões registrados no final de 2024. Em seus relatórios, a Kodak reconheceu “dúvidas substanciais” sobre sua sobrevivência, emitindo o alerta regulatório conhecido como “going concern”. Diante de sua maior crise financeira desde a falência de 2012, a empresa vem adotando uma série de medidas para evitar o colapso e viabilizar sua continuidade operacional.
Uma das maiores apostas da empresa é a diversificação para o setor farmacêutico. A Kodak inaugurou instalações certificadas pela FDA para a produção de medicamentos regulados, inclusive princípios ativos e produtos para diagnósticos médicos, ampliando assim seu portfólio para além da fotografia tradicional e buscando novas fontes de receita em setores mais estáveis e promissores.
Simultaneamente, a empresa anunciou a reestruturação do plano de aposentadoria KRIP, um movimento estratégico para liberar cerca de US$ 500 milhões em ativos financeiros. Esses recursos serão direcionados prioritariamente para o pagamento e a redução das dívidas de longo prazo, aliviando o passivo financeiro e diminuindo os custos com encargos.
Além dessas medidas, a Kodak também está planejando uma oferta pública de ações no mercado, com expectativa de levantar até US$ 100 milhões. Essa captação é vista como fundamental para fortalecer o caixa da empresa, garantir liquidez imediata e suportar as operações durante o período desafiador.
Essas ações refletem a busca da Kodak por um equilíbrio delicado entre inovação, diversificação e controle financeiro rigoroso, tentando se reinventar e garantir sua permanência num mercado global marcado por rápidas transformações tecnológicas e econômicas.
O futuro da Kodak: entre nostalgia e desespero
A ironia histórica é profunda: a Kodak inventou a câmera digital já nos anos 1970, mas não explorou a tecnologia por medo de prejudicar o lucrativo mercado de filmes. Agora, com o filme analógico ressurgindo em popularidade, ele talvez não seja suficiente para sustentar a sobrevivência da empresa.
A Kodak corre contra o tempo para equilibrar o apelo nostálgico que encanta a Geração Z e os cineastas, com a necessidade de sanear suas finanças e garantir viabilidade no mercado altamente competitivo de 2025.
O CEO Jim Continenza mantém uma postura otimista, afirmando publicamente que a companhia “não tem planos de sair do mercado”. Entretanto, os números assustadores refletem que o caminho adiante é delicado e decisivo para o destino dessa marca que revolucionou a fotografia mundial.