O salto do preço do Game Pass, principalmente em sua modalidade mais completa, o chamado Ultimate, que passou de R$ 60 para R$ 120, provocou uma onda de reclamações no Procon e deixou consumidores brasileiros em dúvida: a Microsoft tem direito de aumentar dessa maneira? O Hardware.com.br conversou com exclusividade com Felipe Lima, advogado especialista em Defesa do Consumidor do escritório Silveiro Advogados, para entender o que diz a lei.
Um panorama sobre o aumento do Game Pass
Em 30 de setembro de 2025, a Microsoft anunciou uma reformulação completa do Xbox Game Pass no Brasil, criando três novos planos: Essential (R$ 34,90), Premium (R$ 54,90) e Ultimate (R$ 119,90). O plano mais caro, que antes custava R$ 59,90, praticamente dobrou de valor. Outro reajuste significativo foi o Game Pass PC que passou de R$ 35,99 para R$ 69,90 ( esse plano mantém jogos em day-one).
A empresa justificou o reajuste de 100% com a inclusão de novos benefícios ao plano Ultimate: acesso ao Ubisoft+ Classics (biblioteca de jogos clássicos da Ubisoft), Clube Fortnite (benefícios mensais do jogo) e a promessa de mais de 75 lançamentos por ano, incluindo franquias como Call of Duty disponíveis no dia do lançamento.
Game Pass Core | R$ 34,99 | — | Extinto |
Game Pass Essential | — | R$ 43,90 | Novo |
Game Pass Standard | R$ 44,99 | — | Extinto |
Game Pass Premium | — | R$ 59,90 | Novo |
Game Pass PC | R$ 35,99 | R$ 69,90 | Reajustado |
Game Pass Ultimate | R$ 59,99 | R$ 119,90 | Reajustado |
No comunicado oficial, a Microsoft enfatizou que estava oferecendo “mais conteúdo premium” e “experiências ampliadas” para justificar o novo preço. A empresa também destacou que os novos planos trazem “o melhor valor para diferentes tipos de jogadores”.
Mas a justificativa não convenceu os consumidores brasileiros. Nas redes sociais e no Reclame Aqui, milhares de usuários classificaram o aumento como “abusivo” e reclamaram de serem obrigados a pagar por serviços que não desejam. “Não jogo Fortnite e não quero jogos da Ubisoft. Por que sou obrigado a pagar por isso?”, questionou um assinante no Reclame Aqui.
O principal ponto de conflito está no fato de que recursos que já existiam no plano Ultimate — como acesso a jogos AAA no dia do lançamento — continuam exclusivos desse plano, agora com preço duplicado. Não há opção intermediária que ofereça lançamentos sem os extras adicionados, o que muitos consumidores interpretam como venda casada
O que o CDC diz sobre reajuste de preços?
Ao contrário do que muitos imaginam, não existe proibição automática contra aumentos de preço no Brasil — mesmo quando são expressivos. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) veda apenas a elevação “sem justa causa” e exige transparência nas comunicações.
Felipe Lima explica que a lei não define critérios objetivos sobre percentuais de reajuste. “A justa causa deve ser avaliada de acordo com o caso concreto”, afirma o especialista. Entre as razões aceitas estão aumento de custos, variação cambial e incorporação de novos serviços.
Mas isso torna o aumento automaticamente legal e inquestionável? Lima pondera que não é tão simples assim.
Venda casada: quando incluir serviços vira problema
Uma das principais acusações contra a empresa é a de venda casada. O CDC proíbe condicionar o fornecimento de produto ou serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço.
Lima afirma que a Microsoft precisa garantir a contratação separada de cada benefício incluído no pacote. “É permitida a comercialização de pacotes promocionais, mas deve ser garantida a possibilidade de contratação individual”, diz o advogado.
O principal ponto crítico está no fato de que diversos serviços exclusivos — como jogos no lançamento — só estão disponíveis no plano Ultimate, agora com preço duplicado. “Se for o caso de venda casada, a empresa se arrisca a receber sanções administrativas, assim como que sejam impostas determinações judiciais de disponibilização da contratação separada e restituição de eventual diferença paga a maior, avalia o advogado.
O que o Procon pode fazer?
Centenas de brasileiros já registraram reclamações no Procon-SP após a mudança nos planos. A atuação do Procon, segundo Lima explica, tem natureza administrativa e foca na fiscalização do mercado de consumo. O órgão pode propor Termo de Ajustamento de Conduta ou aplicar sanções que vão desde multas até proibição de atividade.
“São diversas as hipóteses em que os Procons podem aplicar sanções, as quais estão previstas no Decreto nº 2.181, de 20 de março de 1997. Essa atuação deve ser voltada especialmente para questões que envolvam interesse público e, assim, superem apenas o interesse individual do consumidor, detalha o advogado. “A proteção dos direitos individuais dos consumidores, incluindo restituição de valores e pagamento de indenizações, deve ser buscada por meio de ações judiciais”, acrescenta o advogado.
Lima diz que é importante relembrar que o Brasil possui um histórico de experiências malsucedidas, quando houve tentativas de controle artificial de preços, especialmente na década de 1980, de modo que a atuação dos órgãos tende a ser bastante comedida neste ponto, privilegiando a liberdade de preços. “Contudo, quando verificado algum reajuste aparentemente exagerado, e se verifica a possibilidade de ocorrência de danos irreparáveis, normalmente em relação a serviços e produtos essenciais, aplica-se uma medida cautelar para suspensão do reajuste, até que o fornecedor preste os devidos esclarecimentos”.
Cláusulas abusivas: quando o contrato prejudica o consumidor
Mesmo com previsão contratual de reajustes periódicos, existem limites. O CDC possui um rol exemplificativo de cláusulas abusivas, reconhecidas em situações que colocam o fornecedor em posição de vantagem exagerada ou restringem direitos do consumidor.
“O Código de Defesa do Consumidor (CDC) possui um rol exemplificativo de situações em que as cláusulas contratuais são consideradas abusivas. De maneira geral, a abusividade é reconhecida em situações de cláusulas que coloquem o fornecedor numa posição de vantagem exagerada, que permitam a alteração unilateral do contrato pelo fornecedor ou que restrinjam ou dificultem o exercício de direitos do consumidor previstos na legislação”, detalha Lima.
Proporcionalidade entre preço e benefícios
Questionamos se a Microsoft precisaria comprovar proporcionalidade direta entre uma melhoria clara dos novos serviços e o aumento aplicado, Lima esclarece que não existe essa exigência legal.
“Não há necessariamente uma exigência de proporcionalidade direta entre o valor do serviço extra e o aumento do preço, até porque deverá conter alguma margem de lucro. Do ponto de vista da proteção contratual do consumidor, o principal ponto a ser avaliado diz respeito aos demais serviços que estão disponíveis apenas no plano mais completo, que terá o seu valor aumentado, gerando uma situação em que o consumidor seja obrigado a concordar com o aumento do preço, para continuar a utilizá-los. Caso se verifique uma situação assim, entendo que pode haver espaço para questionamento do aumento”, afirma.
Situação atual
A Microsoft adiou o aumento para assinantes atuais em países como Alemanha, Israel e Coreia do Sul, mas, até o momento, mantêm a mudança no Brasil. Segundo a empresa, o adiamento em certas regiões envolve legislações locais que não se aplicam ao mercado brasileiro.
Os novos valores já valem para novas assinaturas desde 1º de outubro. Assinantes antigos serão migrados automaticamente para os novos planos, com a cobrança do novo valor a partir de novembro.
O que pode acontecer na prática?
Com base nos precedentes, o cenário mais provável pode envolver três etapas:
Primeiro, o Procon deve solicitar esclarecimentos formais à Microsoft sobre a transparência da comunicação, a justificativa do reajuste e a possibilidade de contratação separada dos serviços. Esse processo administrativo já começou, com centenas de denúncias registradas no Procon-SP.
Segundo, pode haver proposta de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), no qual a Microsoft se comprometeria a ajustes pontuais — como melhorar a comunicação com consumidores, criar planos intermediários ou oferecer período de adaptação mais longo.
Terceiro, em caso de constatação de infrações graves (como venda casada comprovada ou falta de transparência), o Procon poderia aplicar multas administrativas. O valor seria revertido para fundos vinculados ao órgão sancionador, não aos consumidores individuais.
Ausência de jurisprudência específica
Um fator que complica qualquer previsão é a ausência de precedentes judiciais no Superior Tribunal de Justiça sobre reajustes em serviços de streaming de jogos. “Não foi identificado precedente sobre este ponto específico”, afirma Lima.
Isso significa que tanto o Procon quanto eventuais ações judiciais estarão navegando em território inexplorado juridicamente, o que tende a favorecer a cautela regulatória.
Sem parâmetros estabelecidos, fica mais difícil caracterizar abuso de forma objetiva.
Como registrar reclamação no Procon?
Consumidores insatisfeitos com o aumento do Game Pass têm à disposição canais gratuitos e acessíveis para registrar reclamações formais contra a Microsoft, ou outras empresas. O processo é totalmente online e pode gerar pressão sobre a empresa para rever práticas consideradas abusivas.
Consumidor.gov.br: o canal mais direto
A plataforma Consumidor.gov.br é o canal oficial do governo federal para reclamações contra empresas. A Microsoft está cadastrada no sistema, o que significa que a empresa é obrigada a responder em até 10 dias úteis.
Para registrar a reclamação, acesse Consumidor.gov.br e siga os seguintes passos:
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Crie uma conta Gov.br nível Prata ou Ouro (necessário para registrar reclamações)
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Busque pela empresa “Microsoft” no sistema
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Preencha o formulário detalhando o problema
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Anexe documentos comprobatórios (comprovantes de pagamento, prints de comunicados, e-mails)
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Aguarde a resposta da empresa em até 10 dias
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Avalie a resposta e classifique como “Resolvida” ou “Não Resolvida” em até 20 dias.
Quanto mais documentação e detalhes o consumidor apresentar, mais forte será a base para eventual ação administrativa ou judicial.
Documentos que fortalecem a reclamação:
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Comprovante de assinatura do Game Pass
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Prints ou e-mails com comunicado da Microsoft sobre o aumento
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Histórico de pagamentos (faturas de cartão de crédito ou extratos)
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Protocolo de atendimento com a empresa (se houver contato prévio)
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Prints dos termos de uso anteriores, se disponíveis
Procon estadual: para casos mais complexos
Consumidores que não obtiverem solução pelo Consumidor.gov.br podem acionar diretamente o Procon de seu estado.