Boaventura: D2D, D2C e o futuro da conectividade

há 1 semana 16

*Por Alberto Boaventura – Falar em satélite remonta uma saudosa época de início profissional na Embratel, contemporânea com o lançamento pelo Cazuza da música “Solidão, que nada”. Não era só uma música bonita tocando no rádio — era quase um hino para quem vivia telecom neste período. Para mim, foi mais que uma coincidência: foi a prova da importância do satélite e das telecomunicações nas vidas das pessoas que merecia até a atenção do poeta.

Naquela época, os satélites, eram majoritariamente geoestacionários e dedicados a serviços específicos como broadcast, serviço de voz em áreas remotas e conexões de dados corporativas em bandas bem definidas, evoluíram para além desse papel tradicional. Hoje, com órbitas variadas (LEO, MEO, GEO, HAPS e LAPs) e aplicações ampliadas, consolidam-se não apenas como infraestrutura crítica para operações móveis, mas também como redes complementares às terrestres, fortalecendo a resiliência e expandindo a conectividade em escala global.

D2D e D2C

Mais do que complemento, as redes de satélite têm transformado a arquitetura móvel. Integradas ao ecossistema 3GPP, criam malhas híbridas que asseguram conectividade contínua em locais remotos, embarcações, aeronaves ou crises. Possibilitam IoT via satélite, comunicação direta com dispositivos móveis e serviços críticos. Essa convergência é a base para modelos emergentes como D2D (Direct-to-Device), D2C (Direct-to-Cell ) e em futuro próximo NTN (Non-Terrestrial Networks), que estão redesenhando o cenário global da conectividade e ampliando a inclusão digital em escala mundial.

As modalidades de exploração da conectividade via satélite incluem o D2D, que permite comunicação direta entre satélites e dispositivos de IoT ou sensores, viabilizando monitoramento remoto, rastreamento de ativos, agricultura inteligente e serviços de mensagens de baixa taxa em áreas sem cobertura terrestre. O D2C amplia esse conceito para smartphones comuns, transformando satélites em “torres no espaço” capazes de oferecer mensagens de emergência, SMS, chamadas básicas e, gradualmente, serviços de dados móveis, garantindo cobertura universal e diferencial competitivo às operadoras. Já as NTN, padronizadas pelo 3GPP, representam o modelo abrangente que integra satélites em diferentes órbitas (LEO, MEO, GEO) e plataformas aéreas às redes móveis, assegurando interoperabilidade, resiliência e a preparação para uma conectividade verdadeiramente ubíqua na era do 6G.

O D2D e o D2C são os principais impulsionadores econômicos dessa mudança. Projeções indicam que a conectividade D2D para IoT e outras aplicações deverá gerar US$30 bilhões até 2035, e os serviços D2C para smartphones podem alcançar US$45 bilhões globalmente no mesmo período. A GSMA Intelligence estima que as operadoras móveis (MNOs) poderão ter um aumento de US$20–25 bilhões anuais em 2035 em receitas incrementais provenientes de serviços D2C, com a receita total habilitada por NTN para operadoras podendo superar US$30 bilhões anuais até 2035.

Infraestrutura espacial

Esse crescimento é reflexo de um investimento massivo em infraestrutura espacial. A média anual de lançamentos de satélites, que era de cerca de 150 antes de 2019, saltou para mais de 1.000 em 2020 e tem superado 2.300 satélites por ano nos últimos cinco anos, principalmente devido às megaconstelações comerciais.

A Goldman Sachs Research projeta que o mercado global de satélites crescerá sete vezes, de US$15 bilhões para US$108 bilhões até 2035 em um cenário base, podendo atingir US$457 bilhões em um cenário mais otimista. Adicionalmente, prevê-se o lançamento de 70.000 satélites LEO nos próximos cinco anos, com 53.000 provenientes da China. O setor de telecomunicações está se tornando um grande financiador do setor espacial, oferecendo um fluxo de capital mais previsível e escalável.

As motivações para o avanço da conectividade satelital direta estão ancoradas em drivers que aceleram sua adoção e consolidam seu papel estratégico. A redução da lacuna digital é central, pois ainda há centenas de milhões de pessoas fora do alcance das redes móveis, e os satélites oferecem uma solução econômica para inclusão. Serviços de emergência e segurança, como o SOS via iPhone e o uso da Starlink em desastres, destacam o valor social e crítico dessa tecnologia. A padronização do 3GPP garante interoperabilidade, atrai investimentos e prepara a escala global. Somam-se a isso avanços tecnológicos que reduziram custos em até 40%, parcerias crescentes entre MNOs e operadores de satélite, e a expansão da IoT, que projeta bilhões de dispositivos conectados em setores como agricultura, transporte e manufatura.

Ecossistema dinâmico

As iniciativas de conectividade direta via satélite (D2D/D2C/NTN) vêm se multiplicando no mundo e moldando um ecossistema dinâmico que reúne grandes operadores espaciais, startups de constelações LEO e parcerias estratégicas com operadoras móveis.

A SpaceX Starlink lidera com milhões de usuários e o serviço Direct-to-Cell em cooperação com MNOs como T-Mobile, enquanto o Amazon Kuiper prepara sua constelação para oferecer até 1 Gbps por dispositivo a partir de 2027. A AST SpaceMobile e a Lynk Global avançam com testes que permitem chamadas e mensagens em celulares comuns, e a Apple, junto à Globalstar, consolidou a conectividade de emergência como recurso de diferenciação. Outros players como Iridium, OneWeb, Huawei, Skylo e Eutelsat/OneWeb ampliam a diversidade de modelos de negócio, com suporte crescente de órgãos reguladores, como a Ofcom no Reino Unido.

Em recente notícia, a Starlink adquiriu o espectro da EchoStar por US$17–19 bilhões (AWS-4 e H-block S-band), garantindo recursos estratégicos para expandir o serviço Direct-to-Cell (D2C). Apesar de a Starlink buscar criar uma “camada ubíqua” de atacado com a compra de espectro, o objetivo é a complementação da cobertura das operadoras móveis (MNOs), ampliando o alcance rural e assegurando continuidade de serviço, sem a pretensão de substituir as redes terrestres. A estratégia combina ambição de operadora global integrada, foco em mercados subatendidos e parcerias com T-Mobile, Rogers e Telstra.

Na América Latina, iniciativas ganham força: o Chile estreou o Starlink Direct-to-Cell com apoio governamental, a Argentina validou a tecnologia da Lynk na Patagônia, e no Brasil testes da Viasat, o lançamento da Skylo e parcerias da Telefónica/Vivo e Claro reforçam a integração regional. A Anatel tem sido protagonista, com sandbox regulatório e atualização de normas alinhadas à WRC-23, posicionando o país como referência para adoção de modelos híbridos de conectividade móvel e satelital.

Hoje, a conexão direta por satélite deixou de ser apenas uma inovação tecnológica e transformou-se em projeto de nações, refletindo disputas de soberania e segurança. O exemplo mais claro é o IRIS², programa da União Europeia que prevê uma constelação própria para garantir resiliência, autonomia digital e defesa estratégica até 2030.

Na América Latina, as políticas públicas de conectividade têm buscado acelerar a inclusão digital e reduzir desigualdades regionais, e os satélites passaram a ocupar papel estratégico nesse esforço. Aproximadamente 20% da população ainda está desconectada da internet móvel, o que levou países como o Peru a integrar links LEO em programas governamentais para comunidades indígenas amazônicas, enquanto Colômbia e México testam projetos-piloto em áreas de selva e montanhas. No Brasil, além de parcerias estratégicas com alguns países, o Plano de Conectividade prevê o uso complementar de satélites, incluindo projetos de cobertura em estradas e rotas da Amazônia para comunicação de emergência. Paralelamente, reguladores na região e a Anatel adotam postura proativa ao alinhar regras a padrões globais da ITU e do 3GPP, permitindo sandboxes regulatórios e abrindo consultas públicas. Esse movimento reflete uma visão regional onde a tecnologia espacial não é apenas infraestrutura, mas também política pública para inclusão, segurança e soberania digital.

Para capitalizar este momento, algumas ações estratégicas têm sido coordenadas entre operadoras, indústria e reguladores. As operadoras têm buscado acelerar parcerias com provedores NTN, ampliando cobertura global e resiliência em seus portfólios sem carregar sozinhas o ônus dos investimentos espaciais. Fabricantes e provedores de tecnologia têm alinhado suas inovações aos padrões do 3GPP, priorizando interoperabilidade, evitando fragmentação e garantindo escala global. Reguladores, por sua vez, têm buscado a harmonização internacional do espectro e estabelecer marcos que minimizem interferências e promovam inovação transfronteiriça. Como resultado, essa convergência permitirá transformar o potencial do D2C/NTN em realidade concreta e ubíqua na era do 6G.

Hype vs. física

Apesar de notícias otimistas sobre as operadoras de satélite serem novas operadoras móveis e, mesmo, dos satélites substituírem as torres, existem diversas inviabilidades técnicas. Entre os desafios está a capacidade limitada em áreas densas, coisas que Shannon-Hartley explicam, mas, basicamente, além de espectro, há de se ter a densificação de cellsites para garantir o volume de tráfego. Hoje só o Brasil possui algumas dezenas de vezes em antenas terrestres do que satélites no mundo.  Outras barreiras são a cobertura indoor, o uplink restrito dos terminais móveis (23 dBm), handover e integração com as redes terrestres etc. Além disso, a harmonização e o licenciamento do espectro são complexos, já que diferentes Regiões (1, 2 e 3) existem diferentes esquemas de espectro, exigindo licenciamentos, controle de interferência, adequações e joint ventures fora dessa área. Mesmo no cenário de complementação de cobertura, a viabilidade de longo prazo para a operação D2D/D2C dependerá de acordos comerciais de atacado, da integração de chipsets D2C em smartphones Android e da rede terrestre para capacidade.

Ao olhar para esse cenário em que D2D, D2C e NTN remodelam arquiteturas de rede, atraem investimentos bilionários e se transformam em políticas nacionais e regionais de inclusão e soberania digital, torna-se evidente que a conectividade via satélite deixou de ser apenas infraestrutura tecnológica para assumir um papel geopolítico e social. Do IRIS² europeu aos pilotos latino-americanos, passando pela ofensiva da Starlink com a compra de espectro da EchoStar, a corrida espacial das telecomunicações confirma que o espaço passou a compor o território estratégico da conectividade. No entanto, apesar de toda a sofisticação tecnológica e dos movimentos de mercado, a essência continua a mesma daquela época em que Cazuza cantava “Solidão, que nada”: no fim, telecom sempre foi — e continua sendo — sobre aproximar pessoas, encurtar distâncias e transformar ausência em presença.

* Alberto Boaventura é consultor em telecomunicações, com passagens por cargos nas empresas Deloitte, Oi, Ericsson, Nokia e Embratel

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