A revogação da Norma 4, aprovada pela Anatel e com efeitos previstos para janeiro de 2027, foi duramente criticada por entidades representativas do setor de internet durante painel da Futurecom 2025, realizado nesta quinta-feira, 2. O principal ponto de tensão é a ausência de debate público estruturado antes da decisão, somada à percepção de que a medida compromete a governança da internet no Brasil ao fundir, na prática, serviços distintos — como conexão e telecomunicações — sob um único marco regulatório.
Renata Mielli, coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), destacou que a Norma 4 não é apenas uma regulação técnica, mas um instrumento que estruturou o ecossistema da internet no país desde os anos 1990. “Ela surgiu no contexto do início da internet comercial e dialogava com outras normas que se complementavam. A revogação da 4, sem debate, compromete esse equilíbrio histórico”, afirmou.
Segundo Mielli, a decisão de transformar integralmente a camada de conexão em telecomunicação abre um precedente que compromete a separação entre infraestrutura e aplicações. “Se tudo passar a ser telecom, IP vai virar telecom? Nome de domínio também?”, questionou. Para ela, a medida ameaça a governança multissetorial já consolidada.
Críticas à motivação tributária e riscos à inovação
Gil Torquato, presidente da Abranet, reforçou que a Norma 4 é um marco de referência e foi fundamental para o crescimento da internet brasileira — sobretudo para os provedores regionais, que hoje compõem a maior parte do mercado de banda larga. “Se tem uma norma que funciona, que foi exemplo para o mundo, não tem por que mexer”, afirmou. Para ele, o argumento da simplificação tributária usado pela Anatel não é suficiente para justificar a extinção do SCI: “Isso tem que ser discutido de forma mais ampla. O debate público é fundamental.”
Na avaliação da Abranet, a revogação desestrutura o modelo que diferencia a estrada (infraestrutura de telecomunicações) dos veículos (os serviços de valor adicionado que trafegam sobre ela). “Confundir os dois compromete a inovação, a liberdade de escolha do usuário e a diversidade de modelos de negócios”, defendeu Torquato.
Cristiane Sanches, conselheira da Abrint, destacou que o impacto sobre os pequenos provedores (ISPs) pode ser ainda maior. “A Norma 4 é extremamente sensível para os provedores regionais. Ela não se resume à questão tributária. Está relacionada à própria governança da internet e à garantia de conectividade significativa para o país”, apontou. Segundo ela, a Abrint tem observado com atenção o processo de regularização de empresas — que já somam 16 mil no país — e teme que a mudança no marco regulatório prejudique esse avanço.
Contraponto das operadoras
Representando as operadoras, Diogo Della Torres, da Conexis, apresentou uma leitura distinta sobre a revogação. Ele reconheceu a importância histórica da Norma 4, mas defendeu que a medida coloca o regulamento em linha com a realidade atual do mercado. “Muito se fala da regulação da IA. De alguma forma e do ponto de vista da engenharia, a Norma 4 estabelece o SVA e a comunicação à internet como SVA, e atualmente a conexão à internet já é um serviço de telecom. Na prática, a agência coloca o regulamento em linha com o que existe”, disse.
Para Della Torres, a separação entre SVA e telecomunicações persiste, e não há lacunas regulatórias. “O SVA não deixou de existir, mas não parece fazer sentido que o serviço de internet seja um valor adicionado se é um serviço principal”, afirmou. Ele também defendeu que, além da Norma 4, o setor precisa olhar para novos desafios, como a aplicação de políticas públicas, segurança do trabalhador, letramento digital e segurança do ambiente digital.
Clima de insegurança jurídica e apelo por reabertura do debate
Amanda de Fátima Ferreira, gerente de novos negócios da TelComp, apontou que o desconforto gerado pela revogação decorre da falta de aprofundamento técnico antes da decisão. “Faltam estudos específicos e mais diálogo. Do lado da agência e do setor, é preciso construir uma discussão mais fundamentada para garantir segurança jurídica”, afirmou. A TelComp, que representa prestadoras competitivas de diversos perfis, defende que o processo de simplificação regulatória precisa considerar o conjunto de normas e não ser conduzido de forma isolada.
Mesmo com a medida já formalizada, os participantes do painel foram unânimes ao defender que ainda há tempo para ajustes. Os especialistas também concordaram que a decisão deve priorizar o interesse público e considerar os impactos para a sociedade como um todo, e não apenas para setores específicos. “O tema não está encerrado. Até 2027, podemos construir alternativas que preservem a lógica histórica da regulação, adequem a tributação e garantam um ambiente competitivo para a internet no Brasil”, concluiu Mielli.